A base do presente artigo consiste no texto apresentado na sessão comemorativa da atribuição do Prémio Nobel ao escritor José Saramago realizada no Sindicato Nacional de Jornalistas em 10 de Dezembro de 1998 e posteriormente objecto de comunicação, sobre a obra do mesmo autor, sob o título O Romance na História, no âmbito do XII Curso de História da Literatura Portuguesa promovido pela Universidade Eduardo Mondlane e pelo Centro Cultural Português/Instituto Camões, em Maputo, a 24 de Maio de 1999.
“Portugal é um oásis, aqui a política não é coisa do vulgo, por isso há tanta harmonia entre nós, o sossego que vêem nas ruas é o que está nos espíritos.” Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1985, p. 149).
No presente texto procura-se evidenciar, sobretudo, a importância dos romances do escritor José Saramago como meios motivadores de análise histórico-literária na própria sala de aula. O impacto do vencedor do prémio Nobel não se esgota no facto de haver conseguido tão alta condecoração para o Estado português e para os portugueses mas, e o que é não menos importante, deve ser usado e «consumido», por exemplo, na lição. Falamos, no fundo, no emprego da sua obra enquanto importante documento de cultura que é e que apenas poderá resultar desvirtuado nas suas várias potencialidades didácticas se não for utilizado e absorvido na própria prática pedagógica. Procuramos, de igual modo, salientar o cruzamento interdisciplinar proporcionado pela leitura da obra de José Saramago procedendo a uma rápida alusão ao autor e à sua criação.
O conhecimento dos autores portugueses contemporâneos e o recurso à sua obra no quotidiano da sala de aula constitui um acto cultural relevante e permite o exercício da actividade crítica. No caso vertente percorrem-se as margens que demarcam e aproximam a História e a Literatura. Estas são apenas impressões de um leitor que segue a narrativa a partir do tempo presente em que vive. Que lê reflectindo as suas próprias preocupações. Neste caso, para além do gosto pela História, cruzam-se os interesses pelo social, pelas relações que nortearam os indivíduos de outras épocas, de outros tempos. Mas, se diversos são os tempos tratados em José Saramago, muitas das questões afloradas nas suas obras são permanências, formas próprias do viver humano, constantes na existência dos homens. A História é, em Saramago, um autêntico instrumento pedagógico. Um utensílio de análise tendo em vista a futura construção de uma sociedade melhor, mais equilibrada. A análise histórica constitui, para o autor, um aparelho adequado para a denúncia do lastro secular de explorações, violências e agressões.
Descobrimos na obra de Saramago um permanente comprometimento com a vida; uma missão que se materializa percorrendo a história dos homens e especialmente da condição humana dos portugueses em que avulta o desempenho de personagens arrancadas ao povo, à massa colectiva dos humildes e anónimos. Encontra o leitor uma certa concepção que preside à construção de cenários de outras épocas. Uma determinada visão da História e dos homens que a constróem. Mas também a percepção dos limites e dificuldades que uma tal construção implica. Por isso é permanente, por um lado, o esforço de imposição de rigor usado na descrição de ruas, cidades, hábitos e formas do viver quotidiano e, por outro, a constante dúvida quanto às acções dos figurantes, as suas opções, as escolhas que resultam de maneiras de pensar e sentir comuns a todos os homens mas também preferências marcadas pelas formas de acção próprias do quadro cultural e mental de determinada época. Por exemplo nos cenários temporalmente diferentes de Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa ou O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Saramago demonstra, em primeiro lugar, que História e Ficção são, muitas vezes, dificilmente separáveis. Esbatem-se muitas fronteiras. Caem muitas barreiras. O mundo criado na imaginação parece aproximar-se daquilo que terá sido o real, seja lá o real o que tiver sido.
"Então que é a história? Que fazem realmente os historiadores, de Tucídides a Max Weber ou Marc Bloch, quando abandonam os seus documentos e procedem à «síntese»? O estudo cientificamente conduzido das diversas actividades e das diversas criações dos homens de outrora? A ciência do homem em sociedade? Das sociedades humanas? Bastante menos que isso; a resposta à questão não mudou desde que os sucessores de Aristóteles a levantaram há dois mil e duzentos anos: os historiadores narram acontecimentos verdadeiros que têm o homem como actor; a história é um romance verdadeiro. Resposta que, à primeira vista, nada significa..." (Paul Veyne, Como se Escreve a História, 1983, p. 10).
“Então o senhor doutor acha que a história é a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenha a menor dúvida, Que seria de nós se não existisse o deleatur, suspirou o revisor.” (História do Cerco de Lisboa, 1989, p. 16).
Vibra a inquietação do eterno investigador, do inquiridor da natureza humana. Uma curiosidade que suscita interrogações sobre as formas encontradas pelos homens para compreender, sistematizar e regular, em cada época, o mundo e a Natureza que os rodeia.
“(...) neste aventuroso relato se dá como exemplo de erro a afirmação do sábio Aristóteles de que a mosca doméstica comum tem quatro patas, redição aritmética que os autores seguintes vieram repetindo por séculos e séculos, quando já as crianças sabiam, por crueldade e experimentação, que são seis as patas da mosca, pois desde Aristóteles as vinham arrancando, voluptuosamente contando, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, mas essas mesmas crianças, quando cresciam e iam ler o sábio grego, diziam umas para as outras, A mosca tem quatro patas, tanto pode a autoridade magistral, tanto sofre a verdade com a lição dela que sempre nos vão dando. (...) amanhã irão dizer os leitores inocentes e repetirá a juventude das escolas que a mosca tem quatro patas, por assim o ter afirmado Aristóteles, e no próximo centenário da tomada de Lisboa aos mouros, no ano de dois mil e quarenta e sete, se Lisboa houver ainda e portugueses nela, não faltará um presidente para evocar aquela suprema hora em que as quinas, ovantes no orgulho da vitória, tomaram o lugar do ímpio crescente no céu azul da nossa formosa cidade.” (História do Cerco de Lisboa, pp. 27-43).
Saramago mostra que de muitos materiais se faz a memória do passado. Chama-se-lhes fontes. Porque delas brota o conhecimento do passado que é, ao mesmo tempo, a procura de nós próprios. Sempre que perdemos esse conhecimento, perdemo-nos a nós próprios também. O tempo é ele próprio mas também a intensidade com que o vivemos ou com que o fazemos renascer.
“Se os segundos fossem todos iguais, como os vemos traçados nos relógios, nem sempre teríamos tempo para explicar o que dentro deles se passa, o miolo que contêm, o que nos vale é que os episódios de mais extensa significação calham a dar-se nos segundos compridos e nos minutos longos, por isso é possível debater com demora e pormenor certos casos, sem infracção escandalosa da mais subtil das três unidades dramáticas, que é, precisamente, o tempo. (...) Tem o relógio horas tão vazias que, breves mesmo, como de todas é costume dizermos, excepto aquelas a que estão destinados os episódios de significação extensa, consoante ficou antes demonstrado, são tão vazias, essas, que os ponteiros parece que infinitamente se arrastam, não passa a manhã, não se vai embora a tarde, a noite não acaba.” (O Ano da Morte de Ricardo Reis, p. 180).
Não é também estranho que em “História do Cerco de Lisboa”, seja o simples engano de um revisor de texto, ou melhor, a deliberada opção de um simples revisor que, num acto de coragem, e apenas com uma palavra acrescentada, altera todo o sentido de uma história que tradicionalmente lhe fora contada. Nesse momento, o homem joga-se inteiro, corrigindo algo que o senso-comum banalizara mas que para ele, pura e simplesmente, não serve. Contraria a versão corrente. Incorre no perigo, que pagará, de exercer plenamente o livre-arbítrio, a liberdade individual, o último reduto da vontade. Tal acto toca fundo num problema epistemológico básico e fundante com que se confronta permanentemente também o historiador - a questão do estabelecimento dos limites da interpretação do passado; o problema da procura de uma objectividade ideal; a consciencialização da impossibilidade de uma reconstrução literal do fenómeno complexo que é a vida. Vida que nunca se deixa aprisionar em qualquer modelo explicativo por mais brilhante e completo que este nos pareça. Isto, por muito abundante que seja a documentação de que se dispõe, por muito variadas que sejam as fontes com que se trabalha. O autor mergulha, igualmente, nos testemunhos de outros tempos procurando, através do seu estudo e análise atenta, captar a magia e a autenticidade das várias épocas retratadas ao longo de cada obra. Cidades, ruas, monumentos, vida material. Os cenários em que, como num filme impossível, se movem os indivíduos, as pessoas, os que são o objectivo último de todas as obras. E vão-se revelando, com grande eficácia e encantamento, os ambientes de outros tempos.
“(...) hoje é dia de alegria geral, porventura a palavra será imprópria, porque o gosto vem de mais fundo, talvez da alma, olhar esta cidade saindo de suas casas, despejando-se pelas ruas e praças, descendo dos altos, juntando-se no Rossio para ver justiçar a judeus e cristãos-novos, a hereges e feiticeiros, fora aqueles casos menos correntemente qualificáveis, como os de sodomia, molinismo, reptizar mulheres e solicitá-las, e outras miulhaças passíveis de degredo ou fogueira. (...) E estando já passados quase dois anos que se queimaram pessoas em Lisboa, está o Rossio cheio de povo, duas vezes em festa por ser domingo e haver auto-de-fé, nunca se chegará a saber de que mais gostam os moradores, se disto, se das touradas, mesmo quando só estas se usarem.” (Memorial do Convento, 1982, p. 50).
Mas esse encantamento é desvendado sob a óptica inevitável do presente. Presente e passado cruzam-se, deste modo, de uma forma permanente convidando a toda uma critica aos costumes, às fatalidades, às moralidades, às amarras que prendem os homens sem que estes delas dêem muitas vezes conta.
“(...) deveremos nós resistir à tentação de, levados pelo hábito, chamar maquiavélico, pois Maquiavel, a esse tempo, ainda não era nascido e nenhum dos seus antepassados, contemporâneos ou anteriores à tomada de Lisboa, se havia distinguido internacionalmente na arte de enganar.” (História do Cerco de Lisboa, p. 279).
“Mas é tão sóbrio el-rei que não bebe vinho, e porque a melhor lição é sempre o bom exemplo, todos o tomam, o exemplo, o vinho não.” (Memorial do Convento, p. 51).
Depois, é o tempo futuro. Aquele se constrói em cada dia. Aquele que obriga ao conhecimento e libertação dos laços que, nascidos lá longe, ainda constrangem e abafam. Aqui, neste espaço de criação do tempo vindouro, nascem heroísmos individuais de existências humildes e anónimas. Actos de luta, tenacidade, sofrimento e solidariedade que rasgam a intolerância, a violência, a opressão. Muitas vezes sofrendo. Num padecimento como o de Blimunda que transporta consigo esse dom simultaneamente abençoado e maldito de ver o interior do outro. De ver com os seus próprios olhos aquilo que aos outros está vedado e, por isso, de sofrer. Por carregar esse fardo que consiste em dispor de um conhecimento que com mais ninguém pode ser repartido, partilhado.
Viajamos no tempo, sempre reflectindo a partir do cais do presente - do tal instante imaginário que separa o passado, que já não é, do futuro, que não é ainda. Visitamos Pessoa e os heterónimos; mas podemos assistir, em plena Idade Média, ao assalto a uma Lisboa então muçulmana, a cargo dos cristãos que não são os que se aprendiam nas escolas primárias; conseguimos ver crescer em Mafra um Convento que paga as angústias e supersticiosas promessas reais em busca de uma fertilidade essencial; lemos novíssimos evangelhos reescritos por mãos humanas ou podemos lembrar histórias épicas de um Alentejo de sofrimento.
O escritor participa activa e comprometidamente em todos os momentos da sua obra. Para o criador, a reconstrução das ambiências de outros tempos não é ingénua ou quando o é, essa ingenuidade é a mesma do autor que a conta. É a sua visão que está em jogo. É a sua voz que dá corpo à narrativa. Sobressai, de entre o painel da obra, de si já longe de objectiva, a intensidade da anotação psicológica, o breve mas preciso toque que caracteriza as figuras, os permanentes comentários e ironias.
“Não é vulgar em reis um temperamento assim, mas Portugal sempre foi bem servido deles.” (Memorial do Convento, p. 18).
Actualmente vários historiadores profissionais reconhecem placidamente, aquando do balanço da sua actividade, que haviam afinal produzido essencialmente textos norteados pela pura e simples curiosidade intelectual ou que resultavam como uma espécie de “romance baseado em factos verdadeiros”. É que não é fácil aferir a mentalidade de uma época, as subtilezas da linguagem, as preocupações diárias do homem e da vida ao longo do tempo. Não é também tarefa fácil recriar, literariamente, esses outros mundos que conhecemos pelos vestígios que deles temos e que, mesmo quando neles vivemos e participámos, foram para nós tempos de acção, de paixão e empenhamento.
Mais difícil ainda é apurar a natureza do viver, do sentir colectivo. A especificidade da vivência daqueles que permanecem arredados da maior parte da documentação oficial. Mas em Saramago encontra o leitor os anónimos e humildes a quem é conferida a dignidade de figuras centrais. Esses pequenos pormenores que tornam afinal possível a aventura sublime de viver.
“No geral do ano há quem morra por muito ter comido durante a vida toda, razão por que se repetem os acidentes apoplécticos, primeiro, segundo, terceiro, e às vezes um basta para levar à cova, e se o acidentado provisoriamente escapou, fica leso de um lado, de boca à banda, sem voz se o lado foi esse, e também sem remédios que lhe acudam, tirando as sangrias, que se receitam às meias dúzias. Mas não falta, por isso mesmo falecendo mais facilmente, quem morra por ter comido pouco durante toda a vida, ou o que dela resistiu a um triste passadio de sardinha e arroz, mais a alface que deu a alcunha aos moradores, e carne quando faz anos sua magestade. Quer Deus que o rio seja pródigo de peixe, louvemo-los aos três por isso. E que alface, mais as outras hortaliças, venham nas burricadas do termo, ceirões repletos, a toque de saloios e saloias, que neste trabalho não se distinguem.” (Memorial do Convento, p. 27).
Os poderosos, por seu lado, tornam-se humanos, e não é de estranhar que os percevejos incómodos se encontrem também presentes nas camas dos reis. Caem as máscaras do poder. E é essa queda uma condição essencial para que até mesmo os deuses possam, descendo lá do alto do Olimpo onde os mortais os imaginaram habitar, entender finalmente os homens e interessar-se pela sua condição.
“Já se deitaram. Esta é a cama que veio da Holanda quando a rainha veio da Áustria, mandada fazer de propósito pelo rei, a cama, a quem custou setenta e cinco mil cruzados, que em Portugal não há artífices de tanto primor e, se os houvesse, sem dúvida ganhariam menos. (...) Quando a cama aqui foi posta e armada ainda não havia percevejos nela, tão nova era, mas depois, com o uso, o calor dos corpos, as migrações no interior do palácio, ou da cidade para dentro, donde este bichedo vem é que não se sabe, e sendo tão rica de matéria e adorno não se lhe pode aproximar um trapo a arder para queimar o enxame, não há mais remédio, ainda não o sendo que pagar a Santo Aleixo cinquenta réis por ano, a ver se livra a rainha e a nós todos da praga e da coceira.” (Memorial do Convento, p. 16).
“(...) deu a procissão uma volta inteira para mostrar-se ao povo que ajoelhava à passagem e, tendo constantemente motivos para ajoelhar-se, ora a cruz, ora o patriarca, ora el-rei, ora os frades, ora os cónegos, já nem se levantava, bem poderemos escrever que estava muito povo de joelhos.” (Memorial do Convento, p. 135).
Sente-se também na linguagem a perfeita adequação à época. O linguajar específico de cada período que veicula toda uma mundividência, uma forma de ser. Traduz o código empregue em cada caso - as formas de tratamento e o discurso próprio de homens que vivem problemas universais num tempo determinado.
“(...) não faltaria zombarem de nós pela vergonha de tal pronúncia do Norte em terras de Sul, nem parecemos aquele país civilizado que deu mundos ao mundo velho, quando o mundo tem todo ele a mesma idade, e, se vergonha realmente for, decerto não ficará maior se lhe chamarmos bergonha.” (Memorial do Convento, p. 107).
A universalidade dos temas confere à obra do autor uma garantia de permanente actualidade. Por sua vez, é essa actualidade, de igual modo, que permite um ensaio de compreensão da evolução do povo, do seu percurso comum, do seu lugar no mundo. É que as histórias de Saramago são, muitas vezes, histórias inscritas na história colectiva do povo. Não podemos estranhar, por isso, que no lugar de galerias de poderosos encontremos antes descrições fervilhantes da vida popular.
Tópicos como a religião ou as religiões, o amor, as concepções de moralidade, o peso da economia expresso na dinâmica da vida social, o poder - muitas vezes desnudado, despojado dos artifícios formais que, uma vez perdidos revelam apenas os homens e as suas humanas preocupações e todo o quadro mental e cultural que condiciona as formas de existência.
“Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e esperar o resto da vida para saber quem é, se alguma vez o saberemos, pois ser não é ter sido, ter sido não é será, mas outro é o costume, quem foram os seus pais, onde nasceu, que idade tem, e com isto se julga ficar a saber mais, e às vezes tudo.” (Memorial do Convento, p. 102).
Entre muitas outras abordagens que podemos destacar encontramos a religião e mentalidade.
“Na guerra de João perdeu a mão Baltasar, na guerra da Inquisição perdeu Blimunda a mãe, nem João ganhou, que feitas as pazes ficámos como dantes, nem ganhou a Inquisição, que por cada feiticeira morta nascem dez, sem contar os machos, que também não são poucos.” (Memorial do Convento, p. 110).
Mas ao olhar aqueles homens de outros tempos, o leitor vê-se permanentemente, continuamente - de forma muitas vezes perturbadora - a si próprio. Vence-se a cegueira crónica do que não quer ver. Por exemplo quando notamos o que poderíamos considerar um outro tema - o da "identidade", do "ser português".
“Quando Lamberto Horques tomou senhorio das terras de Monte Lavre e seu termo, ainda o torrão estaria fresco do sangue de castelhanos, frescura só por metáfora açougueira aqui citada, se formos a comparar com muito mais antigos sangues de lusitanos e romanos, de toda a balbúrdia e confusão de alanos, vândalos e suevos, se cá chegaram, que os visigodos sim, e mais tarde os árabes, essa cáfila infernal de cara preta, e ora pois lá vieram os borgonheses a derramar o seu e o dos outros, e uns tantos cruzados não só osbernos, e mouros outra vez, Virgem Maria, tanto morrer viu afinal estas terras, e se de sangue português ainda não se falou, é porque é todo este ou o passou a ser depois do tempo conveniente para valer a naturalização, por isso não foram citados franceses e ingleses, em verdade estrangeiros.” (Levantado do Chão, 1988, p. 94).
A mulher constitui também outro tópico de destaque em Saramago. Encontramos diversas mulheres compondo, de variadas formas, os quadros imaginados de outras idades.
“E não foi uma nem duas vezes que Sara da Conceição, tendo deixado o filho na vizinha, se meteu dentro da noite à procura do marido, rebuçando as lágrimas no lenço e na escuridão, de taberna em taberna, que em São Cristovão não eram muitas, mas de mais, e sem entrar, de largo buscava com os olhos, e se o marido estava, ali se punha na sombra, apenas à espera, como outra sombra. E também aconteceu dar com ele perdido no caminho, sem tino da casa, deixado pelos amigos, e então o mundo ficava de repente bonito, porque Domingos Mau-Tempo, de gratidão por ser encontrado em desertos de assustar, entre cordões de afantasmas, lançava um braço sobre o ombro da mulher e deixava-se levar como criança que provavelmente continuava a ser.” (Levantado do Chão, pp. 23-24).
Também as batalhas, com os seus horrores e violências mas criando «contactos»; ou as dificuldades da vida diária; a fome, as necessidades; mas também a amizade. E o tema da guerra que é, de igual modo, o da sua inutilidade.
“(...) Largo de Santo António da Sé e cavássemos fundo nos aparecesse um alicerce do tempo, algumas escamas de ferrugem de antigas armas, um cheiro de tumba, dois confundidos esqueletos, de guerreiros, não de amantes, gritaram ao mesmo tempo, Cão, e ao mesmo tempo um ao outro se mataram. Sobem e descem automóveis, os eléctricos rangem na curva da Madalena, são da carreira vinte e oito, particularmente estimados pelos realizadores de cinema, e lá adiante, a virar em frente à Sé, vai outro autocarro repleto de turistas, devem ser franceses que julgam que estão em Espanha.” (História do Cerco de Lisboa, Lisboa, p. 71).
Por todas estas, mas ainda por muitíssimas outras razões, os livros de Saramago são, pois, documentos preciosos para a compreensão destes tempos que vivemos mas também outros tantos documentos ideais, verdadeiras memórias críticas de tempos passados. Permitem-nos reconstituir imagens do passado preenchendo lacunas, inventariando transformações, contemplando a diversidade e alimentando as nossas perspectivas.
“(...) um homem precisa fazer a sua provisão de sonhos.” Memorial do Convento, p. 41).
Finalmente, não podemos deixar de assinalar no autor o inconformismo, a coragem de navegar em rumo contrário à corrente, a permanente crítica, tão acutilante quanto fundamentada. E finalmente, por detrás de tudo, sempre aquele discurso criativo de eternidade, serenidade...apenas perturbada pelos espaços em branco, pelas criações da ficção.