FORMAÇÃO DE PROFESSORES
por Casimiro Rodrigues
Ao longo da minha prática docente jamais pude deixar de ensaiar uma reflexão sobre os condicionalismos da formação de professores. Desde o início, enquanto formando e posteriormente enquanto formador. Ainda enquanto jovem professor, em inocente início de carreira, comecei por frequentar algumas acções que considerei de valor desigual mas que, invariavelmente, provocavam em mim a necessidade de, em jeito de balanço, avaliar a sua eventual importância sobre a minha actividade enquanto docente.
Algumas impressões ficavam em mim de forma duradoura. Positiva ou negativamente. Fomentavam a curiosidade e o interesse mas também, muitas vezes, a desconfiança.
Em certas acções parecia-me que os colegas, na realidade, falavam-nos sobre o que deveríamos fazer nas aulas mas não pareciam, eles próprios, dispor de grande experiência quanto ao domínio sobre que dissertavam, aconselhavam ou discorriam de forma mais ou menos convicta. Apetecia-me perguntar, em muitos casos, qual era concretamente a sua experiência lectiva e onde a haviam desempenhado. A pergunta, nada inocente, obteve, algumas vezes, uma resposta que justificava um pouco da malícia com que tinha sido feita. Chamo a estes casos, e em virtude da enfermidade que padecem, os que se inscrevem no grupo, que presumo cada vez mais raro, da formação imberbe.
Outra situação era a de formadores que - apesar da curta experiência pedagógica que evidenciavam - procuravam apresentar resultados da sua desejada carreira de investigadores em domínios diversos que vão da psicologia a técnicas de informática, entre muitos outros. Não estavam, portanto, imbuídos de qualquer insconsciente desonestidade, como os que enfileiram o caso atrás descrito, e revelavam, em muitas situações, uma competência inegável. Em tais casos, e apreciando o valor da reflexão, estudo e investigação académica, faltava quase sempre a estes formadores, não obstante a sua preparação científica, o “estofo” próprio do contacto com alunos dos vários níveis de ensino que pudesse, de forma cabal e convincente, elucidar os colegas formandos quanto aos benefícios e utilidades dos estudos apresentados, a nível sociológico, técnico, didáctico. A este tipo de formação apelido de técnica exterior por, a despeito da sua natureza elaborada e científica ou especializadamente técnica não haver almejado o encontro com os docentes em formação por não os haver intimamente convencido da possibilidade, utilidade e pertinência dos resultados apresentados, essencialmente porque oriunda (e só) do exterior da escola. Em suma – por não parecer possível, com maior ou menor razão, aos formandos, a sua aplicação naquele que é o seu mundo e que comporta, como seria de esperar, alunos, salas de aula, materiais escolares, ou ainda se quiserem, utilizando terminologia em voga, recursos.
Um terceiro tipo de formação é aquela a que chamo cénico-pedagógica. Aí, o formador tenta, muitas vezes partindo de uma experiência lectiva real que possui e muitas vezes até no domínio da formação de professores, ensaiar os ambientes que se podem viver nas escolas. Um exemplo – determinada colega, com ar exterior de muita experiência acumulada, resolve apresentar, para comentário de quem assistia, cenas filmadas de simulações de atendimento de directores de turma a pais que supostamente se dirigiam à escola. As cenas cuidadosamente filmadas provocaram muitas gargalhadas no auditório de colegas ansiosos por uma formação de créditos ditada pela voluntária vontade resultante da obrigatoriedade de amealhar alguns créditozitos absolutamente necessários para o avanço na carreira. Para além da boa disposição, registe-se, desde logo, uma certa estranheza – que na altura lhe fiz eu próprio no que considero haver sido uma obsequiosa e respeitosa intervenção ainda que mercedora de acolhimento algo frio – quanto ao carácter artificial que resultava de professores simularem pais e os problemas das famílias que das entrevistas deveriam resultar uma vez que: primeiro, não lhes era fácil despirem-se da pele de professores; segundo, sabiam que estavam a ser filmados e toda a cena se tornava, desde logo, estranha; terceiro, a situação ideal, que seria filmar situações reais é impossível, porque ilegal e eticamente reprovável e por este mesmo facto, ainda que fosse a única situação de eventual proveitosa observação, já que os actores não se despiriam dos seus papéis, estaria, como vemos, fora de questão.
Certa vez lembro-me também de um formador que me sugeria o consumo, na sala da minha turma, de uma construção de alguns metros utilizando, para o efeito, os tempos lectivos previstos no primeiro período do ano de escolaridade em apreço. Lembrei-lhe que jamais poderia gastar com o ponto programático em que se enquadrava a laboriosa construção da fantástica e original criação mais que algumas poucas aulas e perguntei-lhe se ele conhecia o programa. Quando me respondeu que não era isso o importante… percebi, desde logo, que na realidade nada daquilo era, afinal, verdadeiramente importante. E desisti.
Apesar do tom que venho utilizando, a formação é um assunto verdadeiramente importante. A formação dos professores prende-se com a sua especialização. É esta especialização que se assume como um trunfo na dignificação da sua profissão. Uma especialização com raízes no passado: por exemplo nas reformas pombalinas em que um Estado centralizador passa a conceder licença para o ensino distinguindo o profissional do amador e permitindo aos professores reivindicar a sua autonomia ante as pretensões de controlo dos municípios que achavam, por seu lado, que o imposto que por iniciativa do Marquês lhes era cobrado justificava a sua ingerência na vida dos docentes (Sobre as Reformas Pombalinas vejas-se a interessante informação de ANTÓNIO NÓVOA, Do Mestre-Escola ao Professor do Ensino Primário – Subsídios para a história da profissão docente em Portugal (séculos XVI-XX), Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior de Educação Física, 1986, p. 15.); ou uma mesma especialização que conheceu nas utópicas iniciativas da República, em domínios como a associação de professores, a procura das inovações educacionais, entre outras; muitas e diversas formas de acabar com o flagelo do analfabetismo a caminho de uma escolaridade efectivamente obrigatória - factores identificados por muitos como autênticas condições intrínsecas às possibilidades de sucesso da própria República enquanto sistema político. Foi ainda condicionando a formação e as suas potencialidades que o Estado Novo ensaiou, no domínio educativo, o espartilho que apertava os espíritos e abafava as ideias. No centro de cada turbilhão, em cada época, estiveram os professores. Era em nome da sua especialização (seus reais conhecimentos e verdadeiras competências nas matérias leccionadas) e com o seu carácter crescente em matéria de exigência e especificidade que reivindicaram a melhoria, conseguida muito a custo, do seu estatuto remuneratório e social.
O valor da formação de professores resulta, em primeiro lugar, da sua credibilidade (o que é muito mais que o número de créditos que cada acção concreta representa). Para que esta credibilidade se verifique e sedimente é necessário que os temas das várias acções de formação se traduzam em matérias tratadas que tenham uma ligação real como o mundo da escola. Quer se trate de matérias de aprofundamento científico e seu correspondente reflexo nas actividades lectivas, quer se trate, consoante o caso, da aquisição de um corpo de conhecimentos, por exemplo no domínio da informática – verdadeiramente - na óptica do utilizador, nas técnicas de tradução de uma dada língua, em formas de mobilização dos interesses dos alunos para a própria escola, etc.. Em suma, quando são ventilados aspectos que ligam os domínios de especialidade de cada profissional do ensino e dessa sua especialidade às necessidades e especificidades das escolas, do país, da região.
Não esqueçamos que existem ainda as exigências próprias de cada reforma do sistema educativo e que até estas carecem, tantas vezes, de um acompanhamento que se traduza numa trocas de experiências reais, no compartilhar de problemas e na busca de soluções.
A avaliação é outro desses temas em que uma boa reflexão entre profissionais do mesmo ofício pode ser bem sucedida. Ela não é uma abstracção teórica sem sentido. Faz-se todos os anos, em cada período. A sua clareza ou a sua complexidade apenas encontra eco naqueles que a ela estão ligados por inerência profissional.
Claro que não podemos esquecer os tais valores exteriores à escola. Os muito propalados parâmetros que marcam, quantas vezes o rendimento dos alunos, as suas reacções, a sua formação. Não os de uns quantos pais e alunos. Mas os que tendem para esse universo que é constituído por todos os que frequentam a escola mas que nem sempre dispõem das mesmas possibilidades de fazer-se ouvir.
Poderíamos continuar a desfilar exemplos. Reais. Porque a realidade dos professores é tão rica que não é necessário encená-la em laboratórios impossíveis.
Finalmente, toda e qualquer formação profissional deve partir dos próprios docentes ou por eles ser ratificada. É a eles que compete inventariar necessidades, formular sugestões, aderir ou não a temas propostos. Gastar dinheiro em formação ou ganhá-lo, com ela, não é senão natural. Trata-se de gerar riqueza - gerindo-a. Para instituições e para formadores. Deverá tratar-se de um serviço efectivamente prestado. Mas, nunca o esqueçamos, no domínio da formação de professores tudo funciona num plano de horizontalidade. Os que formam sentem, necessariamente, as exigências e os desejos dos que com eles procuram adquirir ou ampliar o corpo constituído pelo conjunto dos seus apetrechos para uma prática lectiva real – não imaginária, nunca neutra, jamais imóvel. As instituições que coordenam a formação situam-se, pois, no mesmo plano, trabalhando em igualdade com aqueles que são seus colegas e que deles esperam apenas a preocupação oriunda de um igual. Em todo este processo, não existem diferentes linhagens ditadas pelo que quer que seja mas tão somente as exigências de um sistema que, despendendo com a formação, apenas poderá esperar que ela resulte numa actividade proveitosa e verdadeiramente enriquecedora. Por nenhuma razão e em nenhum caso a formação de professores deve assumir-se, repetimo-lo, como um factor de desestabilização da profissão docente mas antes como um verdadeiro instrumento da sua promoção. Um instrumento autêntico. Abençoado.
Para além de inconfessáveis interesses de indivíduos, tutelas, estranhas ligações, alianças de oportunidade, gestões danosas e ruinosas (sempre pouco pedagógicas), sobre as quais pesa um olhar severo, competente e legal que se situa para além do seu pouco bem e de todo o seu imenso mal.
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