sábado, 17 de outubro de 2009

"Media, Educação e Liberdade", base da comunicação ao Colóquio de Educação e Comunicação Social - Universidade dos Açores

Media, Educação e Liberdade.




Educação

Com a Revolução Francesa, a «Escola» fora proclamada laica, democrática e liberal. Também gratuita. Na base de 1789, estava o espírito das «luzes», e era ele que abria agora os caminhos para a ideia de construção de um «sistema de instrução pública». O ensino estatiza-se, seculariza-se. Tornado obrigatório, quer-se universal. A «escola» é nuclear no triunfo da Revolução. «Fábrica» de cidadãos e de ideologia.

Por exemplo constituindo a base do que certos autores apelidam «ensino liberal». A. C. Grayling entende-o como

“(…) o ensino que inclui literatura, história e apreciação das artes, atribuindo-lhes um peso igual ao que é dado às matérias científicas e práticas.”

Para o mesmo autor, a educação dos nossos dias

“(…) distorce o objectivo da instrução, visando o desenvolvimento dos indivíduos não como fins em si, mas como instrumentos do processo económico.”

A herança francesa perdurará, na educação, como em outras áreas, ao longo do agitado séc. XIX, de outras revoluções; constituições; parlamentos; liberalismos – políticos e económicos. Teóricos a mais ou práticos a menos. Os ideais burgueses triunfantes adaptam dessa herança os aspectos que lhes são mais caros. Do enorme alfobre teórico retira-se o que convém às práticas burguesas, às suas necessidades. Arrumam-se crianças e mulheres em locais apropriados, na grande fábrica da vida. A luta contra o analfabetismo é bandeira de vários países. Os ritmos diferentes. Como os das economias, do poder, das religiões.

Ao longo do século XIX traça-se a distinção entre dois conceitos fundamentais: “instrução” e “educação”. Sublinharam-no nomes importantes como Garret ou Herculano, materializando em Portugal uma tendência que era europeia.

Com a «instrução» dotam-se os indivíduos de conhecimentos novos, ensinando-lhes o que é considerado útil ou indispensável conhecer. A instrução relaciona-se com o saber – comportando aspectos de uma visão científica e cultural determinada –, com a transmissão de conhecimentos, seu desenvolvimento e aplicação. Estes últimos permitem novas competências, aptidões, ambições e para elas concorrem noções de carácter geral, cultura, educação, erudição, sendo transmitidas pela língua e educação formal. A instrução que se ministra espelha a visão que se tem do Outro, o seu objecto.

O «ensino» surge como um treino, implicando assim uma transferência de conhecimento e de valores. Neste acto de ensinar está, normalmente, incluído o conceito de «adestramento» como forma de conduzir os indivíduos a uma formação que deles conscientemente se pretende. Pela educação procura-se introduzir uma dada civilidade. Todos os povos educam os seus elementos, socializam-nos, para que se integrem e façam parte da dinâmica social que permite aos povos perdurarem e continuarem a existir. Trata-se de um processo de adaptação de um indivíduo à sociedade, à colectividade ou da integração de uma criança na vida em grupo, incorporando-a na comunidade – dotando-a de um papel a desempenhar. Este processo complexo constrói a identidade.

No século XIX, a educação desenrola-se, pois, num mundo que experimenta profundas e rápidas transformações.

Nas palavras de Franco Cambi:

“A época contemporânea propôs também – em pedagogia – um face a face mais explícito e radical entre instrução e trabalho, que se afirmaram como momentos centrais da ação pedagógica e da projeção educativa. A instrução afirmou-se como direito universal e como tarefa social. O trabalho é bem verdade que se impôs como dever social, mas, antes ainda, como atividade específica do homem. As duas frentes se interligaram, mas dialeticamente, dando lugar a uma série de problemas que resultam típicos da contemporaneidade.”

Um Dicionário de Educação e Ensino do séc. XIX define «instrução» do seguinte modo:

Esta palavra (do latim instructio, disposição, derivado de struere, construir) exprime a sciencia mais vulgar, o que se aprende nas escólas. Differe da educação a instrucção, sendo que a primeira incluea idéa do bom emprego e uso da segunda: póde pois haver instrucção com má educação, se o saber não é realçado por boas maneiras e bons costumes. O fim da educação é desenvolver as faculdades moraes, em quanto a instrucção visa a enriquecer as faculdades intellectivas. (…).



Ainda que, «educação» e «instrução», ambas concorram para o mesmo fim, salvaguarda-se que é compatível instruir sem educar, ainda que o não seja formar o coração sem ao mesmo tempo desenvolver o espírito. Se a educação pode suprir a instrução, já esta última não pode dispensar a primeira.

O Dicionário de Campagne vai mais longe e, as suas últimas páginas ocupa-se do problema de se será ou não perigoso o ensino e a instrução nas classes inferiores, construindo-se uma argumentação que procura concluir pela negativa, baseada no pressuposto de que um povo instruído reconhecerá mais facilmente três aspectos importantes: o seu interesse na paz e ordem pública; a inviolabilidade das propriedades como um esteio das sociedades e a “monstruosa injustiça” que consiste em atacar as classes ricas. Vantagens de uma instrução sólida baseada na ciência e na religião.

Também é a educação que produz o homem sociável; é ela que pode suprir uma menor instrução (o que inversamente não é possível), ensinando o dever e a sua prática, aspectos que salientam o valor da educação religiosa, forma privilegiada de obstar a que o homem se torne apenas um animal inteligente, unicamente engrandecido pela ciência, que não o pode formar completamente. A formação intelectual não humaniza sem uma educação moral que a enquadre. Os talentos e a ciência deveriam ser enquadrados por forças superiores.

Ainda no século XIX diversos autores lembram a importância para a «educação» do conhecimento dos usos, exemplos, costumes públicos e leis e, especialmente, da religião, com a sua autoridade e a correcção de vícios que proporciona.

D. António da Costa referia, em 1870, que em Portugal a criança é para os pais, infelizmente, um capital que não encaram que poderia ser muito mais produtivo se fosse enviada à escola, pelo que estes combatem o ensino obrigatório com base no “direito paterno”, a que acrescenta “(…) aggravado muitas vezes com o direito da malvadez”.

Hoje em dia, a educação desenrola-se num mundo que experimenta profundas e rápidas transformações. Como refere, no final do século passado, Juan Luís Tedesco na sua obra O Novo Pacto Educativo:

"Os responsáveis pela apresentação da análise global do tema afirmam que "A revolução mal começou, mas já sofremos o seu efeito esmagador. Ultrapassou a nossa capacidade de controlo, tornou obsoletas as nossas leis, transformou os costumes, desordenou a economia, conferiu nova ordem às prioridades, redefiniu os postos de trabalho, subverteu as constituições e alterou o nosso conceito de realidade. (...) Entre os muitos critérios possíveis para descrever as características básicas das mudanças que se avizinham, escolhemos três áreas em que ocorrem importantes processos de transformação: o modo de produção, as tecnologias da comunicação e a democracia política".

Essas mudanças afectam profundamente o funcionamento da "escola" e questionam o lugar por ela ocupado tradicionalmente.

As alterações que incidiram nas instituições educativas abateram-se, de igual modo, sobre os estabelecimentos de ensino e as actividades de professores e alunos - no próprio papel de uns e outros.

Assinalemos, desde logo, a desagregação de algumas unidades tradicionais. Tal é o caso da família. As mudanças no papel da família - quando se não pode falar mesmo na sua desagregação - ocorridas nos últimos tempos, levam-nos a questionar o papel da chamada «socialização primária» - essa entrada e iniciação nos mecanismos do mundo - que deveria ser proporcionada pelo meio familiar. Como refere Tedesco:

"(...)estamos a assistir a um processo mediante o qual os conteúdos da formação cultural básica da socialização primária, começam a ser transmitidos com uma carga afectiva diferente da do passado, quer porque os adultos significativos na formação das novas gerações são, tendencialmente, diferentes, quer porque o ingresso nas instituições é cada vez mais precoce, ou porque, num sentido mais geral e profundo, os adultos perderam a segurança e a capacidade de definir aquilo que querem oferecer, como modelo, às novas gerações."

Da eficácia dessa socialização primária a cargo da família, dependeriam frutos imediatos para a criança mas, de igual modo, e a prazo, benefícios para a posterior socialização que a escola poderia proporcionar. A família seria, pois, autêntica sede de modelos para a criança, local em que se observariam os relacionamentos que permitem uma primeira identificação. A «crise da família» (em maior ou menor grau), e a sua extensão quantitativa, ao maior ou menor número foi, contudo, suficientemente forte para transferir para a escola um conjunto de responsabilidades que lhe não caberiam, de forma tão categórica, há alguns anos atrás. Aos docentes é actualmente exigida uma atenção acrescida e um cuidado constante envolvendo a apresentação, aos alunos, de normas de socialização primárias; atenção extensível aos aspectos básicos da sociabilidade, dessas primeiras formas de convívio e relacionamento com os outros.

Qual o papel do adulto, afinal? E qual a sua função no seio da própria família? A este respeito, lembra Savater:

"Todavia, para que uma família funcione educativamente é imprescindível que alguém nela se resigne a ser adulto." (...) Quanto menos os pais querem ser pais, mais paternalismo se exige ao Estado."

Os condicionalismos profissionais dos pais, as novas rotinas quotidianas e as limitações de tempo, as formas de sociabilidade dos jovens com os outros - numa entrega claramente maior a si próprios - assumem hoje contornos marcadamente diferentes.

Outro requisito dos nossos dias consiste na própria aprendizagem da vivência numa sociedade democrática. Este é um dos valores fundamentais para que a escola concorre. Nela se desenrola - ainda que não exclusivamente - a aprendizagem e o treino que prepara para a cidadania.

Paralelamente, um outro imperativo da escola consiste no combate ao conformismo. Assinala Pascal Bruckner:

"As nossas sociedades estão encegueiradas pelo conformismo porque são compostas de indivíduos que têm a presunção da singularidade mas alinham o seu comportamento pelo de todos."



Importa a criação de atitudes simultaneamente críticas mas também responsáveis - porque reflectidas e interiorizadas - relativamente ao mundo e à sua ordenação.

Essa tarefa ganha maior importância num ambiente marcado por uma nova mundividência caracterizada pelo consumo. Consumo que torna acessível o imaginário maravilhoso na perspectiva de aquisição plena de todos os bens, mas que agrava a desigualdade e a desilusão pela consciência que o novo desfavorecido tem, ante a publicidade, a televisão, da sua própria incapacidade e privação.

A pluralidade actual de meios educativos coloca, por seu lado, novos problemas. A começar por essa realidade, não tão recente mas de influência progressiva, que consiste no que alguns apelidam como o "império da televisão".Escreve Bruckner que:

"A televisão só exige do espectador um acto de coragem - mas ele é sobre-humano -, que consiste em apagá-la."



O mesmo meio de informação que nos traz belos e úteis elementos sobre o mundo e as coisas pode contribuir, por outro lado, para o avanço de uma certa apatia. Reforçada com muitas horas consumidas em apelativos jogos de vídeo. É ainda clara e evidente, por outro lado, a tentação de no televisor depositar uma parte considerável do cuidado das crianças e de, com ela, conseguir o afrouxamento das obrigações dos adultos para com os mais jovens. Televisão e consumismo, apresentam um inegável quadro de vantagens - uma aproximação democrática, um maior poder aquisitivo - qualidades facilmente reconhecidas e que as transformam em conquistas indispensáveis. O perigo surge quando tais benesses - televisão e consumo - se assumam como lenitivos tendentes a afastar-nos de alguns aspectos essenciais - por exemplo, do exercício da cidadania, facilmente trocada pela ilusão de compra instantânea da própria felicidade. É inegável o valor educativo da televisão; particularmente quando se reconhece que pode transportar consigo a revelação/informação do real; trata apelativamente de temas difíceis; é acessível a todos sem necessidade de grande iniciação; e entra em casa «sem precisar de pedir licença». Por outro lado, adverte Savater:

"Precisamente uma das questões metodológicas primordiais do ensino esclarecido é despertar um certo cepticismo científico e uma relativa dessacralização dos conteúdos transmitidos, como método antidogmático de alcançar o máximo de conhecimento com o mínimo de preconceitos."



Mas que fazer perante o manancial de informações assim obtido? Que lugar para o educador? Antes de mais, parece caber-lhe uma mediação. O professor ajuda a sistematizar e filtrar informação. Pode ajudar a dissipar a dúvida e a clarificar a distinção entre a imagem e a realidade. Precavendo. Auxiliando. Evitando que a criança se anule perante as imagens que se arrisca a, passivamente, consumir.

Hoje como nunca, a escola tem que encontrar o seu novo lugar no quadro da sociedade. Deve questionar o seu papel, conteúdos, intervenção. Tarefa agravada pelo facto de que a dinâmica produtiva, social, mental sofre mudanças que impõem uma adequação das instituições e agentes educativos. Tal facto não deve, contudo, confundir-se com os ataques à escola e as tentativas para a sua desvalorização. Tais ataques, apesar de, a maior parte das vezes infundados, e porque não se assumem como formas de valorizar e melhorar, erram frequentemente o alvo, apesar de não deixarem de produzir algum desgate - no domínio do prestígio, da função, da imagem da instituição escolar. A escola - pensada, melhorada, apetrechada - continua e continuará a desempenhar um papel fundamental em ordem ao desenvolvimento, ao conhecimento científico, ao progresso.

Ela continua a ser local privilegiado para o tratamento de valores morais, racionais básicos, que podem ser objecto de transmissão e, por outro lado, cumpre-lhe a necessidade de preservação e respeito pela consciência moral de cada um. É na escola que se aprende a liberdade e a necessária disciplina para a atingir. Nela se educa transmitindo uma herança de conhecimento mas procurando entender os interesses dos educandos - o que é diferente, por sua vez, da pura e simples «auto-satisfação» dos educadores.

"Com efeito, é impossível aprender sem se centrar no próprio acto de aprendizagem, ou seja sem gostar dele e sem o desejar. Esta primeira evidência que foi redescoberta e reafirmada pela psicologia contemporânea sustenta todas as explicações que se podem dar sobre o funcionamento, sobre o êxito ou sobre o fracasso da escola. Isto explica por exemplo, como o constataram múltiplos inquéritos contemporâneos, que as crianças que têm êxito na escola são aquelas que vêm de meios familiares onde se valorizam as operações culturais e intelectuais."



O impulso de criação para o desenvolvimento de qualquer das diversas actividades humanas e para o próprio progresso e avanço das sociedades necessita, por um lado, de formas mínimas de enquadramento; contudo, para que se não degrade e extinga, precisa igualmente do apelo permanente da liberdade. O passado foi o que foi, e é tão verdade dizer que nada poderemos fazer para o modificar, como reconhecer que ele resultou de opções e escolhas tomadas, a cada momento, pelos homens, no seu tempo. Também o presente não é uma fatalidade - muitas vezes explicada pela ideia de conformismo, de que "tudo assim é, porque é assim que tem que ser" - mas antes o espaço de liberdade, porque nele se jogam as opções e escolhas que desenharão o futuro. Ser pessoa implica tomar parte, de forma activa e empenhada, neste jogo que hoje fazemos.

Outro aspecto essencial do processo educativo consiste na importância de educar para a autonomia. Para alguns autores, um dos problemas com que se defronta a sociedade ocidental consiste no infantilismo e na vitimização. Considerando ambos os aspectos como autênticas «doenças», outras tantas formas de fugir à responsabilidade, sintomas da imaturidade. Afinal que adultos seremos? Que representa o direito de "se ser pessoa"?

Sublinhe-se, pois, a importância de educar para a autonomia. A necessidade de combate à instauração fácil da ligeireza e ao triunfo permanente do capricho. A criação de adultos que, querendo assumir as prerrogativas da autonomia não estão dispostos a abdicar da protecção quanto a toda uma frivolidade longamente cultivada na juventude.



(...) A nossa época privilegia uma única relação entre as idades: o decalque recíproco. Macaqueamos os nossos filhos, que por seu lado nos copiam. (...) Tal é o paradoxo da educação: dispor o homenzinho para a liberdade através da obediência a adultos que o ajudam a já não ser assistido e o acompanham na sua emancipação progressiva. No que se refere à educação, a autoridade é o terreno onde se apoia e finca a criança para dela se desprender em seguida e o mestre ideal é o que ensina a matar o mestre (quando afinal muitos educadores se sentem tentados pelo abuso do poder, pelo prazer de reinar sobre almas maleáveis que eles decretam inaptas para a maturidade a fim de melhor as dominar).



Aliemos-lhe a necessidade de cultivar o mérito. Merecer algo significa elementar justiça e adequação entre os nossos desejos e a realidade. A permissividade absoluta e a satisfação de necessidades e desejos sem o reconhecimento do que é necessário para os obter pode, muitas vezes, ser responsável pela inadaptação às dificuldades da vida. Educar para a autonomia é um requisito essencial para os nosso dias, em que prolongamos a infância, muitas vezes, para além de tudo o que seria tolerável.

No acto educativo a autoridade do professor não é, como por vezes apressadamente se julga, desprezível. Uma autoridade que não é, em rigor, a mesma de outras épocas. Mas é, ainda assim, autoridade. Um pouco a este respeito Savater afirma:

"Antes de ser educada não existe na criança nenhuma personalidade própria que o ensino avassale mas só uma série de disposições genéricas, fruto do acaso biológico; através da aprendizagem (não apenas submetendo-se a ela, mas também rebelando-se contra ela e inovando a partir dela) forjar-se-á a sua identidade pessoal irrepetível. Certamente que se trata de uma forma de condicionamento mas que não põe fim a« qualquer primitiva liberdade originária e que possibilita precisamente a eclosão eficaz do que humanamente chamamos liberdade."



A pretensão de educar ou ser educado tem muito a ver com o direito de se realizar como pessoa. Com o direito de se ser homem e mulher. Plenamente. Também com a alteridade que, admitindo a diferença do outro, a sua individualidade, contribui para o enriquecimento, que é uma forma de valorização, da nossa própria identidade. A escola actual, não só deve admitir a diferença, como se pode enriquecer com ela.

Existe a urgência de, com a maior clareza possível, encaminhar a nossa reflexão pedagógica em direcção às necessidades reais experimentadas pela escola e pelos educadores. A este respeito desabafa Savater:

"Há que reconhecer-me, pelo contrário, a paciência com que suportei em muitas ocasiões, a gíria de alguma pedagogia moderna, cujos pedantes barbarismos, tipo «micro-sequenciação curricular», «dinamização pragmática», «segmento de ócio» (o recreio), conteúdos comportamentais e atitudinais», etc., são um autêntico cilício para quem verdadeiramente queira elucidar-se sobre alguma coisa."



Outros são os imperativos da educação, nos nossos dias: valorizar o ensino informal (pais, adultos) e formal (pessoas especialmente vocacionadas para o efeito; aprofundando a ligação entre a escola e o meio, com a própria sociedade. Lembra ainda Savater:

"O destino de cada ser humano não é a cultura, nem sequer a sociedade, em sentido restrito, enquanto instituição, mas os seus semelhantes. (...) É que o primeiro objectivo da educação consiste em tornar-nos conscientes da realidade dos nossos semelhantes. Isto é, temos que aprender a ler as suas mentes, o que não equivale, simplesmente, à destreza estratégica de prever as suas reacções e adiantarmo-nos a elas para as condicionar em nosso benefício, mas implica antes de tudo atribuir-lhes estados mentais como os nossos e disso depende a própria qualidade dos nossos."

As novas tecnologias levantam novos problemas. Impõe-se, desde logo, a obrigação de não as rejeitar e o imperativo de compreender o seu funcionamento. Mas também as suas limitações e as precauções a observar.

Referindo os conteúdos da educação Tedesco observa:

"Sob este aspecto, o desenvolvimento impressionante das tecnologias da informação, desencadeia a necessidade de evitar o que Hanna Arendt tanto temia: a separação definitiva entre conhecimento e pensamento. As tecnologias actuais possuem uma enorme capacidade de acumular e processar informação. Este processo, levado ao extremos, suporia que passaríamos a ser incapazes de entender, pensar e falar sobre o que, não obstante, temos possibilidades de realizar. O homem, afirmava H. Arendt, parece possuído dum sentimento de rebelião contra a existência humana, tal como ela nos foi dada, e deseja alterá-la para algo criado por si mesmo. A nossa inteligência já não nos satisfaz; queremos criar uma inteligência "artificial", do mesmo modo que queremos criar vida e prolongá-la para além dos limites até agora naturais."



O caso da internet ´e exemplar, quer quanto à sua utilidade, quer quanto às novas exigências de rigor na selecção de informação.

Exige-se igualmente atenção redobrada aos mecanismos dos processos de desqualificação do outro. Em primeiro lugar, desse "outro" que vive junto de nós. Do vizinho de que, muitas vezes, nem sequer bem nos apercebemos. Aquele que de nós está, frequentemente, apenas separado (ainda que de forma eficaz) pelo muro da cultura. A escola deve procurar corrigir, tanto quanto lhe for possível, as assimetrias no acesso ao conhecimento e à vida cultural eliminando a estigmatização.

Importa ainda sublinhar o papel nuclear dos recursos humanos. Dito por outras palavras: as pessoas são importantes. Num momento em que se procura fazer acreditar que toda a gente é substituível (o que é verdade num sentido restrito) temos que afirmar uma outra realidade, a de que toda a gente é importante e mesmo insubstituível quando se dedica, empenhada e competentemente, à tarefa que lhe cabe. Cada pessoa representa um investimento, pessoal e colectivo, que pode e deve ser rentabilizado. Nunca ignorado ou diluído na força tirânica do número. A escola é, por isso, também um espaço de valorização do ser humano.

A prática lectiva implica hoje um conjunto de amplas exigências que se colocam aos professores. Actualização, reflexão, trabalho de equipa são alguns dos requisitos dos novos docentes.

Finalmente, o ensino passa, nos nossos dias, por dois aspectos fundamentais, a saber: em primeiro lugar, a necessidade de valorizar o conteúdo à forma - que é o mesmo que dizer a valorização da aula, do acto de ensinar, da tarefa educativa, em detrimento da burocracia asfixiante, da redução do professor ao mero agente burocrático; e em segundo lugar, um outro aspecto que qualquer docente perceberá perfeitamente, o imperativo de limitar a própria burocracia (reduzindo-a ao seu devido lugar) o que, numa época em que o fenómeno de globalização se veste de tons de alguma inevitabilidade equivale ao objectivo primeiro de evitar, aquilo que Paulo Freire classificava como a própria "burocratização do pensamento".



Media



O afã de registar as notícias e evolução das sociedades é antigo. Permito-me lembrar um grande cronista, Fernão Lopes que nos deixou um manancial imenso de notícias e reflexões sobre a revolução de 1383-85. O insuficientemente lembrado cronista explica no seu Prólogo á Crónica de D. João I algumas das suas principais preocupações e críticas aos compenheiros de ofício:
“Grande licença deu a afeição a muitos, que tiveram cargo de ordenar estórias, mormente dos senhores em cuja mercê e terra viviam, e onde foram nados seu antigos avós, sendo-lhe muito favoráveis no recontamento de seus feitos; e tal favoreza como esta nasce de mundanal afeição, a qual não é, salvo conformidade d’alguma cousa ao entendimento do homem. Assim que a terra em que os homens por longo costume e tempo foram criados, gera uma tal conformidade entre o seu entendimento e ela, que havendo de julgar alguma sua cousa, assim em louvor como por contrário, nunca por eles é direitamente recontada; porque louvando-a, dizem sempre mais daquilo que é; e se doutro modo, não escrevem suas perdas, tão minguadamente como aconteceram”

A passagem é muito importante como aferidor da consciência de Fernão Lopes ao redigir as suas crónicas. O homem procura relatar-nos a verdade liberta das conivências, dependências, a que chama “conformidades” e a que acrescenta as geradas pelas necessidades para o corpo e espírito que se traduzem numa tal cumplicidade. Trata-se da consciência das relações do homem com o espaço em que vive, bem como com os outros homens. O indivíduo é assimilado pelo meio que o cerca o que o impede de o descrever. Critica alguns cronistas que o precederam e que teriam escrito de modo a que fosse patente o agrado de quem serviam. O seu desapego a qualquer necessidade de agradar aos outros levá-lo-ia, como consequência, a servir, unicamente, a Verdade.

Não é também estranho que num romance de Saramago, “História do Cerco de Lisboa”, seja o simples engano de um revisor de texto, ou melhor, a deliberada opção de um simples revisor que, num acto de coragem, e apenas com uma palavra acrescentada, altera todo o sentido de uma história que tradicionalmente lhe fora contada. Nesse momento, o homem joga-se inteiro, corrigindo algo que o senso-comum banalizara mas que para ele, pura e simplesmente, não serve. Contraria a versão corrente. Incorre no perigo, que pagará, de exercer plenamente o livre-arbítrio, a liberdade individual, o último reduto da vontade.

Tal acto toca fundo num problema epistemológico básico e fundante com que se confronta permanentemente também o historiador - a questão do estabelecimento dos limites da interpretação do passado; o problema da procura de uma objectividade ideal; a consciencialização da impossibilidade de uma reconstrução literal do fenómeno complexo que é a vida. Vida que nunca se deixa aprisionar em qualquer modelo explicativo por mais brilhante e completo que este nos pareça. Isto, por muito abundante que seja a documentação de que se dispõe, por muito variadas que sejam as fontes com que se trabalha.

Apercebendo-me que se poderá argumentar, como é tão corrente nos dias de hoje, que também a mim me falta “pragmatismo”, por não apresentar propostas concretas de trabalho afastando-me, por essa via, do real, qualquer que ele seja, opto por alinhavar um Inventário imperfeito de diversas temáticas susceptíveis de tratamento – na comunicação, na escola, ou no quotidiano:

1. Analisar hipóteses, como as de Bento XVI, na sua recente obra “Jesus de Nazaré”, em que retoma preocupações da Encíclica Spe Salvi, de 30 de Novembro de 2007, apontando a “alienação” como poderoso fundamento da História do Homem com implicação não apenas no domínio material. Porque a a”alienação” hoje, já não é só económica e é, verdadeiramente, global;

2. Denunciar a crescente uniformização dos corpos e dos pensamentos;

3. Desocultar o espectáculo que invade toda a comunicação como primado da forma sobre o conteúdo.

4. Descodificar as formas e mecanismos de apropriação e manipulação política dos media;

5. Restituir o carácter de serviço público à actividade política, não permitindo que ela se confunda, em tempo algum, com o espectáculo, investido de funções idênticas às do evergetismo romano, expressão de honra, fama e poder, que produziu os jogos, pagos pelos ricos, para o povo.

6. Descodificar qualquer nova retórica e sofística para justificar, reformulando-a, a mentira;

7. Estudar como na superabundância de notícias, umas se anulam às outras redundando em repetições infindáveis e banalizadoras;

8. Perceber como funciona a mercantilização de tudo, mesmo da vida privada, com os seus modelos; em que, inspirando-me em Humberto Eco e a sua obra “A Passo de Caranguejo”, vão – do «idiota» do domínio privado ao «incipiente» do domínio público;

9. Desmistificar os novos valores – que certos rappers proferem em máximas para os jovens, como que querendo “gravá-las no bronze” do género: “enriquece, ou morre a tentar”;

10. Perceber que os cada vez mais frequentes comentadores “do tudo” apenas se aproveitam da complexidade das matérias para obter, a troco de trivialidades, uma pensão regular;

11. Perceber o poder da linguagem através da descodificação de cada novo corpo lexical intencionalmente estruturado como, a título exemplificativo, a invasão do “alegadamente”, das “boas práticas”, dos “impulsos reformistas” e tantas outras criações do “politiquês” e do “futebolês”;

12. Interiorizar que a a História dos homens não se resume a uma qualquer fatalidade mas é, antes de mais, produto das actividades, opções e soluções humanas;

13. Valorizar, por todos os meios, a memória histórica partindo de casos concretos. Por exemplo, explicando que a frase “O trabalho liberta” não tem, de facto, em si mesma, nada de errado, sobretudo se se conseguir desligá-la da frase homóloga “Arbeit macht Frei” que encimava os portões de Auschwitz e que nenhum humano dos nossos dias pode ignorar ou branquear;

14. Explicar que a complexidade da vida e da contemporaneidade dificilmente permite que na maioria dos meios de comunicação se possa desbravar a natureza de muitos dos problemas quando neles se exigem respostas imediatas e breves;

15. Entender que o jornalismo de investigação – que rareia em muitos meios de comunicação – produziu, produz e pode produzir alguns dos melhores textos, documentos e análises que figurararam, figurarão e deverão permanecer como grandes testemunhos do nosso tempo;

16. Entender o que significam expressões como “rigor” e “qualidade” tantas vezes e por tantos utilizadas quando aplicadas aos domínios científicos, académicos, culturais e ao quotidiano de todos nós;

17. Desmistificar imagens e conceitos que tendem a reduzir-nos ao artifício e à mentira, tais como as banalizações perigosas envolvendo, por exemplo, a ”guerra”.

18. Entender o papel da responsabilidade social evidenciando que ninguém pode ser herói quando o seu negócio é a “corrupção” que nunca é pequena ou grande, mas apenas “doença” que vai corroendo a liberdade, de forma mais ou menos rápida e acentuada.



Liberdade

Devo parar o inventário porque se vai tornando longo. Com uma rápida menção à ideia de liberdade. E para que não me argumentem que não apresento soluções, escolho, para terminar, um conjunto de frases, hoje para muitos consideradas inúteis e para outros cada vez mais dispensáveis.

Ainda assim escolho, numa menção livre, uma passagem de Kant que nas minhas ociosas leituras de uma longínqua e imaginária adolescência perdida me marcou e acompanha, com embaraçosa actualidade. Enquanto discorro sobre a minha ideia de “liberdade” solicito humildemente este último esforço de atenção para as palavras do filósofo que terão feito estremecer muitos meninos que procuraram, um dia, respostas intemporais para as suas inquietações, enquanto o corpo mudava, as ideias eram tempestades e os tempos de autonomia se aproximavam.

Escreveu, um dia, Kant, como que serenando a tempestade:

(…) Admitamos que haja uma coisa cuja existência tenha por si mesma um valor absoluto e que, como fim em si, possa tornar-se o fundamento de certas leis; é nesta coisa e nela somente que poderá residir o princípio da possibilidade de um imperativo categórico, quer dizer, uma lei prática.

Ora, digo eu: o homem, e, de uma maneira geral, todo o ser racional existe como fim em si e não somente como meio para servir ao uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas acções, quer elas se refiram a si mesmo, quer a outros seres racionais, deve ser sempre considerado ao mesmo tempo como fim.

(...) Se, portanto, existe um princípio prático supremo, e, no que respeita à vontade humana, se há um imperativo categórico, este imperativo deve assentar na representação do que é fim em si, do que por consequência é necessariamente um fim para cada homem, de modo a ser o princípio objectivo da vontade; é sob esta condição que poderá tornar-se uma lei prática universal. (…) O imperativo prático há-de exprimir-se, portanto, deste modo: Age sempre de maneira a tratar a humanidade tanto na tua pessoa como na dos outros como um fim e a não te servires dela jamais como de um simples meio.

(...) aquele que pensa fazer aos outros uma promessa enganadora logo se apercebe de que deseja servir-se de um outro homem como de um simples meio, como se esse homem não encerrasse em si próprio um fim em si; porque esse homem que eu desejo sirva aos meus desígnios, por meio de tal promessa, não podendo de maneira nenhuma consentir nos processos que quero empregar com ele, não contém em si mesmo o fim dessa acção. Esta violação do princípio da humanidade noutrem é ainda mais flagrante se tomarmos por exemplo atentados contra a liberdade ou a propriedade dos outros. Porque nesse caso é evidente que aquele que viola os direitos dos homens tem a intenção de se servir da pessoa dos outros como de um simples meio, sem considerar que pessoas racionais devem sempre ser tratadas como fins, quer dizer, devem poder conter em si mesmas o fim dessa mesma acção.

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